Wednesday, October 29, 2025

Ciência, cinema, borracha e curare: Curt Nimuendajú em cena

 Elena Welper

Museu de Astronomia e Ciências Afins/MAST

 

Todos os índios que conheci até agora são extremamente inadequados para um filme. A incapacidade deles de se adaptarem aos modos de pensar estrangeiro é surpreendente. Eles não têm nenhum talento para atuar. Suas próprias representações dramáticas sempre ocorrem em um clima extraordinariamente festivo, no qual dançam lentamente ao longo de dias de pré-celebração. A interferência de qualquer elemento estrangeiro, se não conseguir eliminá-lo, imediatamente, faz tudo retroceder. Não se pode obter nada deles 'sob encomenda', e mesmo as vantagens materiais que lhes são oferecidas não surtem efeito. Até agora, todos os filmes que trataram dos índios locais foram uma farsa ou um fracasso. Não quero ser responsável nem por um nem por outro[1]. (Correspondência Curt Nimuendajú-Franz Boas [CN-FB], 27/03/1933, grifo meu)

 

A passagem acima reproduzida foi retirada de uma carta que Curt Nimuendajú escreveu para Franz Boas. Trata-se do segundo entre os três motivos alegados por ele para justificar a sua recusa em participar de uma expedição cinematográfica[2]. O convite, que havia sido feito em telegrama de 23 de março, não forneceu detalhes sobre o projeto. Limitava-se a perguntar se Curt Nimuendajú poderia “acompanhar um grupo de cineastas sem interferência de trabalho científico”[3]. Presumindo que o convite lhe havia sido feito por se tratar de um “filme indígena", Curt Nimuendajú responde-lhe negativamente, alertando para a vigília “xenófoba” que se imporia a um trabalho desta natureza, tendo em vista o processo em curso para criação do Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas e Artísticas no Brasil e as desconfianças contra o “imperialismo norte americano” e a “espionagem alemã”.

Cabe aqui notar que nesta mesma carta Nimuendajú não se mostra contrário à fiscalização de expedições sensacionalistas, como aquelas que periodicamente retomavam as buscas pelo Coronel Fawcett, mas temia que “as pessoas daqui” não seriam “capazes”, e nem teriam “conveniências”, para “fazer uma distinção entre pesquisa séria” e as iniciativas daquele tipo (CN-FB, 27/03/1933). E ainda que isso acontecesse, Nimuendajú mantinha-se cético em relação às possibilidades de um “filme indígena”. Embora reconhecesse algum valor ilustrativo nas imagens, caso contrário não teria sido ele um fotógrafo em campo, Nimuendajú entendia que a presença de equipamentos cinematográficos, e sobretudo de pessoas para operá-los, ocasionava uma perturbação no cotidiano “tribal” que prejudicava o trabalho etnográfico e inviabilizava a coleta de um registro autêntico[4]. Essa é a ideia expressa no segundo motivo, reproduzido no início deste texto: índios seriam “incapazes” de “atuarem” fora de seus longos rituais, e estes não ocorreriam da mesma maneira sob a presença de estrangeiros. Diante dessa premissa, e em acordo com a visão do próprio Franz Boas, que já havia desconsiderado o valor científico do filme Nanook[5], Nimuendajú explicita sua descrença na autenticidade dos registros fílmicos afirmando que até aquele momento, “todos os filmes que trataram dos índios locais foram uma farsa ou um fracasso” (CN-FB, 27/03/1933).

Por fim, como terceiro motivo para recusar o convite de Franz Boas, Nimuendajú explica que homens do cinema teriam expectativas muito próprias e distintas dos homens da ciência:

Já tive aqui vários contatos com pessoas que trabalham com cinema e sempre tive que constatar que minha opinião sobre o índio é incompatível com a delas. É da natureza do filme que ele seja sobre aparências e não sobre o ser, e o cineasta deve sempre ter em mente o horror do "salão vazio", de modo que ele constantemente atormenta a si mesmo e aos outros com a pergunta: ‘Como o público receberá isso no filme?’. No meu trabalho, por outro lado, é apenas uma questão de estabelecer os fatos com perfeição, e posso dizer com toda a consciência que nunca precisei me perguntar o que o público diria sobre o meu trabalho[6]. (CN-FB, 27/03/1933)

Nimuendajú não cita nomes, mas certamente pesou sobre sua esta avaliação a sua experiência com August Brückner, um pioneiro do filme cultural amazônico. Em 1924 August Brückner chegou em Belém como cinegrafista da expedição do Barão Adolf von Dungern, diretor do filme de natureza Urwelt im Urwald (1925). Em 1929 August Brückner retornou a esta cidade com o propósito de captar imagens para dois novos filmes culturais: um sobre animais e outro sobre os indígenas. Na Alemanha August anunciou o plano de visitar os Mundurucus “caçadores de cabeça” do rio Tapajós, mas por fim, em Belém, decidiu filmar a preparação e uso do curare entre os indígenas da fronteira do Brasil com o Peru. Para isso Curt Nimuendajú foi contratado como guia, e assim realizou sua primeira visita aos Ticuna, em novembro de 1929.

Não foi possível ainda recuperar como e quando ocorreu o contato entre o cineasta e o etnógrafo, mas podemos considerar que a relação de Nimuendajú com a colônia alemã de Belém, e também com o Museu Goeldi, ofereceu condições bastante favoráveis para isso. Podemos presumir também que Nimuendajú, baseado em sua última experiência no rio Tapajós, quando trabalhou como “uma mistura de engenheiro e guia de mata” da Companhia Ford Industrial do Brasil (CN-EN, 03/06/1928), tenha oferecido argumentos convincentes para uma mudança no plano inicial de August. Veremos adiante, todavia, qual foi a motivação que o levou a sugerir a filmagem em uma região (Alto Amazonas) que ele nunca havia visitado.

 


Figura 1 “Trabalhadores da Fordlândia, Brasil, 1930” [1928] (Collections of The Henry Ford)

 

A viagem cinematográfica começou em setembro, mas os textos que Nimuendajú escreveu sobre ela dão conta apenas dos quinze dias finais, quando ele, “comissionado” pelo Serviço de Proteção aos Índios, percorreu as aldeias dos igarapés Belém e Preto, e do lago Cajary (Nimuendajú 1929). Em carta escrita “às pressas” no seringal São Jerônimo (Igarapé Preto), em 03 de novembro de 1929, Nimuendajú contou ao amigo Carlos Estevão que a viagem havia sido “boa”, porém, mais demorada do que o previsto, e que por conta da ausência dos “patrões”, os seus “2 companheiros” teriam decidido “voltar sem terem visto coisa alguma das malocas Ticuna”. De acordo com Nimuendajú, eles teriam criado “pretextos” para não realizar o pagamento combinado, e alegando que havia sido uma “viagem perdida” teriam voltado para Belém no vapor S. Salvador, “a fim de ver se conseguem melhores resultados no Marajó” (03/11/1929 apud Nimuendajú 2000, p. 143).

Conforme indicação do Jornal do Commercio, em 08 de novembro August e seu assistente Edgar Eichhorn desembarcaram do vapor São Salvador em Manaus[7]. Algumas semanas depois, em decorrência de uma doença hepática, August foi hospitalizado no Hospital Beneficência Portuguesa de Belém e, após uma intervenção cirúrgica, acabou falecendo em 19 de dezembro[8]. Nimuendajú já havia retornado para esta cidade, de onde escreveu para Erland Nordenskiöld, diretor do Museu Etnográfico de Gotemburgo, comunicando que havia voltado há poucos dias de uma visita aos Ticuna, alcançados depois de meses de “viagens” e “espera”:

“Fiquei na estrada por três meses, dos quais só pude passar 15 dias nos assentamentos indígenas; o resto do tempo foi gasto viajando e esperando[9]. (Curt Nimuendajú-Erland Nordenskiöld [CN- EM] 16/12/1929).

Após a morte de August, o projeto cinematográfico foi concluído por sua viúva Pola Brückner, que assumiu a direção do filme utilizando-se de seu pseudônimo artístico: Pola Bauer Adamara. Pola não acompanhou August na viagem pelo Solimões, mas em seu livro, Eine Frau ging in den Urwald, publicado quase dez anos depois, ela menciona a ajuda de Nimuendajú.

O filme, Urwald Symphonie/ Die grüne Hölle (73 min.), foi lançado em 1931 e teve pelos menos três versões posteriores, tendo sido exibido no Brasil com o título Nas florestas virgens do Amazonas (Welper 2025). Em nenhuma dessas versões há créditos para a participação de Nimuendajú, mas sua imagem aparece na última versão, Die Grüne Hölle (43 min.), onde podemos assisti-lo como um apanhador de jiboia, ao lado de August Brückner (00:41:55) [10].

Embora o rosto de Curt Nimuendajú esteja oculto pela sombra de seu chapéu, fotografias do arquivo pessoal de Pola Brückner confirmam a sua identidade e o contexto de produção da primeira coleção Ticuna feita por Nimuendajú.

 


Figura 2 : August Brückner e Nimuendajú capturando uma jibóia (Arquivo da família Riedeberger)

 

Uma listagem que se encontrava no Arquivo Curt Nimuendajú do Museu Nacional oferecia uma identificação bem precisa dos itens que compuseram essa sua primeira coleção Tikuna (Coleção Tukuna 1929), mas como o documento não indicava o destino da coleção, e como a sua venda precedeu à criação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, essa coleção não “vigiada” (cf. GRUPIONI 1998) tornou-se mais uma coleção “quase esquecida” de Curt Nimuendajú (cf. SCHRÖDER 2019).

Em sua monografia Ticuna, porém, Nimuendajú deixou uma pista sólida sobre o destino desta coleção ao indicar que o artigo do médico sueco Carl Gustav Santesson, publicado em 1939, discutia as propriedades tóxicas do curare a partir de uma amostra que ele próprio trouxera dos Ticuna do Igarapé Preto (NIMUENDAJÚ 1952:30) [11]. Mas é na sua correspondência com Erland Nordienskiöld que encontramos a confirmação de que uma “pequena coleção de cerca de 120 itens”, composta por itens culturais “que não eram conhecidos em sua literatura” foi comprada pelo Museu Etnográfico de Gotemburgo, por “três mil coroas” (1929, 1930[12]).

Esta venda, todavia, não ocorreu por acaso. Em novembro de 1928, Erland Nordenskiöld escreveu a Nimuendajú manifestando seu interesse em estudos etnográficos da fronteira do Brasil com o Peru (regiões visitadas por Constant Tastevin e Günther Tessmann), e propôs o pagamento de três mil coroas suecas para a viagem, e mais duas mil pela coleção enviada (EN-CN, 05/11/1928). Meses mais tarde, Nimuendajú respondeu explicando que apesar de compartilhar o interesse “no estudo da religião e cultura dos povos do Ucayali e Juruá”, não poderia fazê-lo pois “o valor sugerido não seria suficiente” para um trabalho de campo e que “em todo caso não poderia viajar antes de três meses” (CN-EN, 13/05/1929).

Tendo em vista que naquele momento essa comunicação dava ensejo a uma retomada da interlocução de Nimuendajú com Nordenskiöld (abalada desde o fim de sua contratação pelo museu de Gotemburgo, em 1927), a possibilidade de fazer uma viagem de coleta no alto Solimões, subsidiada por August Brückner e pelo Serviço de Proteção aos Índios, oferecia a Nimuendajú não apenas a possibilidade de ganhar dinheiro, como sempre,  mas também de atender a uma demanda de Nordenskiöld, e assim redimir-se do seu “fracasso” no Rio Negro, fato que ele entendia como motivo para o fim do acordo comercial com o museu sueco.

Expressando as premissas etnológicas de Nimuendajú, esta coleção foi constituída com o objetivo de fornecer uma visão geral daquela cultura e o máximo de “elementos necessários para um estudo comparativo”[13]. Além de armas, utensílios domésticos, adornos e objetos “não conhecidos”, a listagem anexada à carta identifica algumas dezenas de “brinquedos” e de objetos rituais utilizados em uma festa de puberdade que não foi assistida por Nimuendajú. Para alguns itens há indicação do nome nativo, mas nenhum tem seus fabricantes identificados (CN-EN, ?/12/1929).

Hoje, uma pesquisa no base de dados on line do Världskulturmuseet permite um amplo acesso à coleção. A ficha descritiva da Coleção Tukuna confirma a data da coleta (novembro de 1929); local (Igarapé Preto, Lago Cajary e Igarapé do Caldeirão, tributários do Rio Solimões) e informa o preço da coleção, comprada diretamente do coletor por $2.670 coroas suecas.



[1] “2. – Alle mir bis jetzt bekannten Indianer sind für den Film außerordentlich ungeeignet. Ihre Unfähigkeit, sich in frende Gedankengnenge einzuleben ist verblüffend. Es fehlt ihnen jedes schauspielerische Talent. Ihre eigenen dramatischen Darstellungen gehen stetn in einer außergewöhnlichen Feststimmung, in die sich langsam und gradweise durch tagelange Vorfeiern hineintanzen, vor sich. Die dazwischenfunkt irgend eines Fremden Elementen, wenn es ihnen nicht gelingt, es sofort auszuschalten, wirft alles sofort wieder um. “ Auf Bestellung” ist von ihnen nichts zu haben, und auch materielle Vorteile die man ihnen bietet, schlagen nicht an. Bis jetzt ist noch jeder Film der sich mit hiesigen Indianer beschäftigt hat entweder ein Schwindel oder ein Misserfolg gewesen. Ich mochte weder für das eine noch für das and[e]re vor verantwortlich sein.” (CN-FB, 27/03/1933)

[2] Esta carta encerra uma pequena série de missivas trocadas entre Curt Nimuendajú e Franz Boas que podem ser consultadas na coleção Franz Boas Papers, da American Philosophical Society.

[3] “Could you take along movie picture party without interference of scientific work” (FB-CN 23/03/1933)

[4] WELPER 2013. A aventura etnográfica de Curt Nimuendajú. Tellus, ano 13, n. 24, p. 99-120.

[5] SCHÄUBLE, Michaela. Visual Anthropology. The International Encyclopedia of Anthropology. Hilary Callan(Ed). JohnWiley & Sons, Ltd. 2018. P. 6

[6] „3. Ich habe hier mehrfach mit Filmleuten zu tun gehabt und stets Festbestellen müssen das meine Stellungnahme zum Indianer mit der Ihrigen unverträglich ist. Es liegt eben nun einmal in der Natur des Films, dass es sich bei ihm um das Scheinen und nicht um das Sein handelt und dass dem Filmmann immer den Schreck geordnet der “ leeren Saale” vorschweben muss, sodass er beständig sich und andere mit der Frage quält: Wie nimmst den Publikum das in Film auf? Bei meiner Arbeit kommt es dagegen lediglich auf die einwandfreie Feststellung von tatsachen na und ich kann wohl mit gutten gewissen sagen dass mir bei deren Ermittlung noch niemals die Frage gekommen ist, was wohl das Publikum zu meiner Arbeit sagen wird.“ (CN-FB, 27/03/1930)

[7] OS PASSAGEIROS Jornal do Commercio (AM), 09/11/1929, p.02

[8] BRÜCKNER, Pola: Eine Frau ging in den Urwald. Schicksal einer Amazonas-Expedition.Berlin: E. Steininger. 1939.

[9] „Ich war drei Monate unterwegs, und davon habe ich nur 15 Tage in den Siedelungen der Indianer zubringen koennen; der Rest der Zeit verging mit Reisen und Warten.“

[10] Welper, E.Pioneira por acaso: Pola Bauer Adamara e o Kulturfilm amazônico/ Oienierin durch Zufall: Pola Bauer-Adamara und der amazonische Kulturfilm. In: Daniela Rothfuss. (Org.). Esperança e Saudade: História das mulheres imigrantes de língua alemã no Brasil/ Hoffnung und Heimweh. Geschichte der deutschsprachrigen Einwanderinnen in Brasilien. 1ed.São Paulo: Instituto Martius-Staden, 2024, v. , p. 185-209.

[11] Carl Gustav Santesson (1862-1939) era professor de farmacologia do Instituto Karoline, em Estocolmo. O artigo mencionado por Nimuendajú ,“Ein starkes Topf-Kurare von den Tucuna- (Ticuna-) Indianern des oberen Amazonas”, foi publicado em Acta Medica Scandinavica, 75:1-9.

[12] A coleção foi enviada em 15 de outubro pelo navio Hildebrand (CN-EN, 21/09/1930).

Friday, August 22, 2025

Sobre Manuel Cruz — advogado, prefeito e etnógrafo no leste matogrossense

Eduardo R. Ribeiro

Quando, em março de 1935, Herbert Baldus visitou a aldeia Borôro de Tori-paru, foi guiado por Manuel Cruz, advogado e ex-prefeito de Lageado, MT (atual Guiratinga), povoado garimpeiro a cerca de duas léguas da aldeia indígena. Baldus o considerava "um dos melhores conhecedores dos índios em questão", atestando suas "boas relações com os habitantes de Tori-paru", sua "dedicação sincera aos estudos etnográficos e sua honestidade a êsse respeito".

Participante ativo na vida intelectual da região, Manuel Cruz foi colaborador assíduo da revista O Garimpeiro (1937-1939), publicando ensaios sobre a história da região e sobre os Borôro; nesta revista saiu, por exemplo, o ensaio "A arte militar entre os Bororo" (1939), que seria republicado no ano seguinte na RIHGB. Suas colaborações caracterizam-se pela objetividade e o espírito científico, destoando da produção típica da intelectualidade provinciana da época, encomiástica, carola, de um civismo caricato.

Também raro para a época e o lugar, em um povoado garimpeiro que cresceu rapidamente à custa do território indígena, Manuel Cruz demonstrava simpatia, respeito e admiração pelos Borôro. Em seus "Ensaios sôbre os indios Bororôs" (1938), por exemplo, defende-os contra as habituais acusações de "ferocidade", explicando que suas escaramuças contra as populações locais eram reações aos abusos que sofriam, "revanches aos incalculaveis maltratos a que lhes submettiam os civilizados, servindo-os seus braços para os mesteres da lavoura, para o que lhe davam uma alimentação escassa e insuficiente para reparar ás necessidades do organismo, tratando-os com despreso, ameaça e galanteando-lhes as mulheres."

Nossa coleção de obras de Manuel Cruz já incluía vários itens, digitalizados por Renato Nicolai com seu habitual esmero, quando fomos contactados por Cid de Carvalho Cruz, filho do autor, com a generosa oferta de vários outros trabalhos de seu pai, enviados em janeiro de 2023 para completar a lista de publicações suas inventariadas por Baldus em sua Bibliografia Crítica (1954). Além de artigos já publicados, Cid enviou-nos uma carta inédita de seu pai a Herbert Baldus (1956), respondendo a questionamentos deste sobre aspectos da coleta dos dados que serviram de base ao estudo sobre a arte militar entre os Borôro.

Temos, portanto, o prazer de divulgar nossa Coleção Manuel Cruz, reunindo a obra de um personagem excepcional e pouco conhecido de nossa etnografia, fornecendo matéria-prima para um melhor conhecimento de um importante capítulo da povoação do Centro-Oeste:

http://www.etnolinguistica.org/autor:manuel-cruz

Saturday, June 28, 2025

Entre o lamentável e o irremediável: notas para a reconstituição virtual do acervo do CELIN/MN


Logo depois do incêndio do Museu Nacional (2018), que destruiu o acervo de Curt Nimuendajú (entre outros bens de valor inestimável), propusemos um plano de resgate de parte do material perdido, através de esforços colaborativos que não se restringissem à esfera oficial — um mutirão científico, por assim dizer. A ideia era sugerir um modelo mais transparente de gestão do patrimônio cultural brasileiro.

Eduardo R. Ribeiro
(junho de 2019)

Introdução

Como é do conhecimento de todos, com o trágico incêndio no Museu Nacional perdeu-se uma das mais importantes coleções de material bibliográfico sobre as línguas indígenas do Brasil: o acervo do Centro de Documentação de Línguas Indígenas (CELIN), que incluía, entre outras preciosidades, o espólio de Curt Nimuendajú, adquirido de sua viúva em 1950. Passado o choque inicial, quando finalmente se começava a ter uma dimensão mais precisa da destruição do acervo, ficou claro que, apesar de tudo, a perda poderia ter sido ainda maior, não fossem iniciativas como (1) a digitalização, em alta qualidade, do original da versão final do Mapa etno-histórico do Brazil e regiões adjacentes (Nimuendajú 1944), levada a cabo por Jorge Domingues Lopes (UFPA) & Marcus Vinícius Carvalho Garcia (IPHAN); (2) a digitalização, por iniciativas de Tânia Clemente e Marília Facó Soares, de centenas de fotos; (3) e o trabalho incansável e providencial de Elena Welper, que "estima ter digitalizado 30% do total de manuscritos que compunham o acervo etnográfico" de Nimuendajú.

Mas, afinal, qual é a dimensão qualitativa do que perdemos? Para se ter uma idéia mais precisa da abrangência e profundidade do material destruído, eu proponho nesta nota uma abordagem multifacetada: analisando-se os levantamentos catalográficos disponíveis à luz da vasta produção de Nimuendajú, particularmente sua correspondência; incentivando pesquisadores da área a compartilharem seus conhecimentos de tal material (e cópias que porventura tenham feito), especialmente entre aqueles que adquiriram, através de pesquisas in situ no CELIN/MN, familiaridade com o acervo; explorando-se o material bibliográfico resultante de tais pesquisas; e estabelecendo diálogos com acervos de outras instuições, a fim de se determinar o que havia de propriamente único (ou não) no material perdido. Embora a ênfase na presente nota seja o acervo de Curt Nimuendajú, a modesta "metodologia" aqui sugerida se aplica a todo o material que constituía o acervo.

Catálogos

Uma consulta ao Guia de fontes e bibliografia sobre línguas indígenas e produção associada: documentos do CELIN, organizado por Marília Facó Soares (2013), revela que, embora toda e qualquer perda seja lamentável, nem toda perda é irremediável. A grande maioria do material bibliográfico perdido constitui-se de livros, periódicos e artigos publicados, além de cópias de teses e dissertações. Embora muitos destes itens sejam, naturalmente, raros, estão disponíveis em outras instituições; muitos, inclusive, já foram digitalizados. Assim, por mais que seja lamentável a perda de uma obra rara como, por exemplo, os dois volumes dos Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens de Martius (1867), não se trata de uma lacuna irremediável.

Outro tipo de material mais facilmente recuperável são relatórios de pesquisa cujas cópias teriam sido arquivadas também fora do Museu Nacional. Um exemplo: por razão de convênio estabelecido quando da instalação do Summer Institute of Linguistics no Brasil, o Museu Nacional funcionava como repositório dos relatórios de pesquisas e publicações daquela instituição norte-americana de linguistas missionários. Logo após o incêndio, o linguista Alan Vogel, do SIL, se ofereceu a fornecer cópias do material a quem se interessar. Como sempre, a Biblioteca Digital Curt Nimuendajú está à disposição da comunidade científica para facilitar o acesso a tal material.

Insubstituíveis, por outro lado, são manuscritos como aqueles do Fundo Nimuendajú, que corresponde grosso modo a 1/5 do material arrolado no Guia. Mas mesmo os itens nesta última categoria apresentam diferentes graus de importância em termos do que sua destruição representa como perda de conhecimento. Para manuscritos que vieram a ser publicados, o que se perde, para o pesquisador, é a possibilidade de se cotejar a versão publicada com seus respectivos manuscritos, em busca de possíveis deslizes de transcrição ou de insights sobre a evolução na elaboração do texto; a existência de diferentes versões, inclusive rascunhos de trabalhos já publicados, ajuda a documentar a evolução do pensamento do autor. Estaria neste caso — de trabalhos já publicados, mas cujos originais se perderam1 — a grande maioria da produção etnológica de Curt Nimuendajú, a julgar pelo que diz Eduardo Viveiros de Castro:

"Praticamente toda a produção etnológica de Nimuendaju já foi publicada, embora muito dela o tenha sido em edições hoje esgotadas, de acesso difícil, ou em alemão. Nos últimos anos, entretanto, algumas traduções, reedições e coletâneas vêm contribuindo para maior divulgação desta obra (ver a bibliografia abaixo). A maior parte dos inéditos de Nimuendaju consiste em materiais lingüísticos (vocabulários), apontamentos, rascunhos, fotos, e uma importante correspondência; salvo engano, apenas um ensaio descritivo sobre os Kayapó de Pau d'Arco (Irãamrayre) e, sobretudo, uma versão em português de sua monografia sobre os Timbira, que difere bastante da versão inglesa editada por Lowie (The Eastern Timbira) em 1946, são os trabalhos etnográficos importantes ainda inéditos. De toda forma, as monografias sobre os Xerente, os Timbira Orientais e os Tikuna ainda estão à espera de uma edição em português; mas seus trabalhos lingüísticos e sua correspondência também merecem uma edição crítica." (Castro 1986:66; grifos nossos)

É natural, portanto, que nosso interesse se volte a esse material linguístico inédito. Embora o caráter sucinto do Guia do CELIN não nos permita ter uma idéia precisa do valor documental de cada item, contamos também com o levantamento feito pela linguista Yonne Leite, Notícia dos trabalhos lingüísticos inéditos de Curt Nimuendaju (1960), que fornece maiores detalhes sobre seu conteúdo. Com Yonne Leite aprendemos que o material linguístico de Curt Nimuendajú é um tanto desigual, incluindo, ao lado de dados originais e inéditos, rascunhos de obras já publicadas e listas comparativas baseadas em dados extraídos de outras fontes. Para o linguista histórico-comparativo, este tipo de material comparativo é essencial para que se tenha uma idéia do teor das evidências usadas por Nimuendajú para a classificação das famílias lingüísticas em seu Mapa etno-histórico. Leite menciona também a existência de diversos mapas — "Mapa de localização de índios na zona do Xingu, Araguaia, Tocantins e São Francisco" (10), "Mapa das tribos do rio Doce", "Mapa da distribuição das línguas Tupí, colorido a lápis amarelo" (13) etc. —, que podem ser vistos como ensaios na elaboração do monumental mapa. Leite menciona que "algumas listas são cópias em carbono" (12), o que sugere a possibilidade de que existam originais ou cópias adicionais em outras instituições.

Como lembra Câmara Jr. (1959), as contribuições linguísticas de maior fôlego produzidas por Nimuendajú dizem respeito à língua dos Xipaya, publicadas originalmente em alemão e recentemente traduzidas e publicadas no Brasil por Peter Schröder (UFPE). Mas o artigo de Leite sugere a existência de outros materiais também extensos, inéditos: apontamentos para uma gramática da língua Kaingáng (119); "um caderno de papel almaço in octavo, à tinta, texto alemão, de Contribuições para o conhecimento da língua Tembé (1916), e um caderno de papel almaço in quarto, texto português, de Material para uma gramática da língua Tembé comparada com a Guaraní do Padre Montoya (1915-1916)" (12); "um minucioso estudo" "sôbre o parentesco do grupo lingüístico Yurúna, de vinte e três páginas" (1); etc. No caso destas línguas, que sobreviveram e vêm sendo documentadas usando métodos de coleta e análise modernos, o trabalho de Nimuendajú teria valor eminentemente histórico (e até histórico-comparativo). Mais cruciais, em termos de documentação lingüística, seriam os dados de línguas extintas, como o "Arvân"(Aruã, família Arawák), a língua dos habitantes originais da Ilha do Marajó, de que Nimuendajú coletou um vocabulário (20). Exemplos adicionais são as línguas Kamakã (família Kamakã, tronco Macro-Jê) e Xukurú (isolada) [vide parágrafo seguinte].

Correspondência

Para o conhecimento de detalhes do material destruído, ajuda-nos também a própria prolificidade de Curt Nimuendajú, cuja obra teria sido, na opinião de Darcy Ribeiro (1977:93), "mais importante do que a obra de todos os etnólogos brasileiros juntos". Sua fértil correspondência com pesquisadores brasileiros e internacionais, através da qual ele compartilhava hipóteses, descobertas, dados linguísticos, fotos e esboços de mapas, fornece inúmeras pistas sobre a natureza do material que ele deixou inédito. Por exemplo, como relata Mário Melo, Nimuendajú conseguiu reunir 150 vocábulos do Xukurú (112), língua extinta do Nordeste que já não contava com falantes fluentes na ocasião. Destes vocábulos, aparentemente, apenas 15 foram publicados, em uma tabela comparativa fornecida por Nimuendajú a Melo (1935). Em correspondência com Mansur Guérios (1948), Nimuendajú discute seu trabalho de campo com D. Jacinta Grayürá, última falante fluente da língua Kamakã, e compartilha alguns de seus dados. Mas a Notícia de Yonne Leite sugere um material mais abundante (5), registrado em "dois cadernos de papel almaço in quarto, a lápis," com "coletas vocabulares, observações lingüísticas e etnológicas, lendas e narrativas". Considerando-se a escassez de documentação sobre esta língua, o material de Nimuendajú seria verdadeiramente inestimável.

Coleções

Outro "efeito colateral" da enorme produtividade de Curt Nimuendajú é que sua obra está espalhada não apenas em diversas instituições brasileiras, como também norte-americanas e européias — o que, de certa maneira, ajuda a salvaguardar seu legado. Encontra-se material de Nimuendajú no MAE/USP (onde está arquivada a correspondência com Carlos Estevão de Oliveira, publicada por Thekla Hartmann em Cartas do Sertão, 2000), no Museu Goeldi (onde se encontra, por exemplo, a versão de 1943 do Mapa Etno-Histórico), na Biblioteca Nacional (onde se encontra o Arquivo Nunes Pereira, que inclui correspondência com e sobre Curt Nimuendajú) e no Museu do Estado de Pernambuco (através de sua Coleção Carlos Estevão de Oliveira). Em busca constante de apoio financeiro para suas pesquisas, Curt Nimuendajú entabulou colaborações com instituições como o Museu Etnológico de Berlim, da Alemanha, e o Museu de Gotemburgo, da Suécia, cujos acervos estão disponíveis online (incluindo vários itens de Nimuendajú). Este material disperso não apenas ajuda a contextualizar o acervo do Museu Nacional, mas, possivelmente, a preencher lacunas deixadas por sua destruição.

Pesquisadores

Além do material digitalizado, mencionado na Introdução, o legado do CELIN sobrevive no trabalho dos pesquisadores que dele se valeram ao longo de suas décadas de existência: nas experiências de convívio e intercâmbio acadêmicos e em artigos, monografias e teses baseados em consultas ao acervo. Além de ajudar a reconstituir virtualmente o acervo (indicando, mais pormenorizadamente, a natureza do material pesquisado), as narrativas destes pesquisadores ajudariam a aferir o impacto que o CELIN teve em suas carreiras e, por conseguinte, na construção do nosso campo de investigação científica. Muitos pesquisadores incluem em suas publicações fac-símiles do material pesquisado (vide, por exemplo, Algumas considerações sobre o problema do indio no Brazil, importante texto de Nimuendajú (1933) incluído em Pane Baruja (2014)). Reunir tais fac-símiles (e outros que porventura permaneçam em arquivos pessoais) seria um passo importante no processo de reconstituição do acervo.

Considerações finais

As notas acima são, essencialmente, um convite à cooperação a todos aqueles que disponham de informações a compartilhar. Interessados em contribuir com este intercâmbio podem fazê-lo de três maneiras: (1) enviando seu depoimento acerca de sua experiência com o acervo (ilustrada, caso relevante, com material bibliográfico resultante de suas pesquisas); (2) enviando comentários e esclarecimentos sobre o material linguístico discutido por Leite (1960), utilizando-se da versão "verbetizada" do artigo; (3) compartilhando cópias de material obtido originalmente no CELIN.

As iniciativas propostas aqui não têm caráter oficial, nem têm como intenção competir com iniciativas de resgate que venham a ser conduzidas em um nível institucional. Trata-se, simplesmente, de uma chamada aberta à cooperação com o intento de preencher lacunas deixadas pela destruição de um acervo valioso — um patrimônio científico do Brasil e, particularmente, de seus povos indígenas — e de reconstituir, senão o acervo, pelo menos sua história. A tarefa requer um esforço coletivo que lance mão de uma vasta rede de pesquisadores, dispersa em diferentes instituições e países. Neste contexto, a Biblioteca Digital Curt Nimuendajú se oferece a continuar cumprindo com seu papel habitual de catalisador e agregador de esforços para a construção colaborativa de um repositório estável de recursos de nossa área.



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Sunday, March 09, 2025

Iconic but anonymous: a note on the photographic representation of indigenous women in Brazil

"O fato de que, em trezentos anos de convivência com centenas de tribos, menos de quarenta pessoas tenham merecido o registro de seus nomes e em geral por razões banais, ilustra bem a insignificância, para o branco, do índio enquanto ser humano. Em meados do século XVIII o próprio João Daniel, missionário e bom conhecedor da Amazônia, dizia que os índios “só pelas feições parecem gente, [mas] no viver e trabalhar se devem entender por feras”."

(Porro, Antonio. 2007. Dicionário etno-histórico da Amazônia colonial. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, USP)



Between 1990 and 1994, the Casa da Moeda do Brasil (Brazil's national mint) circulated a one thousand cruzeiro note (*) celebrating a national hero: Marshall Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), who presided over the country's Serviço de Proteção aos Índios (SPI), the national bureau in charge of indigenous affairs. Rondon's task included building telegraph lines to connect Brazil's vast unknown West (inhabited by many uncontacted indigenous societies) to the rest of the country. In a country where the massacre of indigenous populations in the name of "progress" was still the norm, Rondon's motto, "die, if you must, but never kill an Indian" (Ribeiro 1954), gave him a mythical aura in the popular imaginary. Rondon is one of the most celebrated figures in the country's history, and his name is enshrined in a state (Rondônia), towns (Rondonópolis, etc.), streets, and neighborhoods. The banknote is part of a series featuring prominent Brazilian intelectuals (including writers Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade and Cecília Meireles, scientists Vital Brazil and Augusto Ruschi, and composer Carlos Gomes).

On its face the bill features a photograph of Rondon, flanked by a telegraph station and an outline map of Brazil. The reverse side features photographs of two Karajá Indians (with their typical circular facial tattoos) taken by SPI members during the 1950s or 1960s. The image of the Karajá is juxtaposed with a Nambikwara maloca (collective hut) and images of traditional indigenous subsistence (fish, manioc) and material culture items (a maraca and several ritxoko, popular clay figurines made by Karajá women). Thoroughly decorated with indigenous graphic motifs, the $1000 cruzeiro bill is a thing of beauty, in my admitedly-biased opinion (as a native of Central Brazil who's worked closely with the Karajá since my undergraduate years, leading to an MA and a PhD on their language).




Notoriously anonymous


Thanks to their inclusion in the currency bill, these photographs of the Karajá are among the most recognizable images of indigenous individuals in recent Brazilian history. One of the pictures (the one to the left) gained additional notoriety after being used (with alterations) on the cover of the 1996 album Roots of the internationally-aclaimed heavy metal band Sepultura, which includes collaborations with Xavante (not Karajá) singers. A 2010 magazine article, describing the cover as one of "ten greatest covers" in the history of Roadrunner Records, calls the photograph "found art." Besides signaling the band's return to their Brazilian roots, the picture had the advantage of being freely available, according to frontman Max Cavalera: "It's public domain so anybody could use it and we didn't have to pay anything."



Since they are in public domain (thanks to a government-led chain of expropriation and decontextualization), the pictures became fair game for commercial exploitation, culminating with their use on a dress modeled by actress Natalie Portman, created by Jean-Paul Gaultier (1996), a designer famous for resorting to cultural appropriation under the guise of diversity appreciation:



Although promptly recognizable, the Karajá individuals in these photos have remained nameless. That may be seen as the continuation of a tendency pointed out by Antonio Porro (2007) in the epigraph above, referring to the initial three centuries of Brazil's colonization: the fact that very few indigenous individuals had their names documented, illustrating "the insignificance, to the white man, of the Indian as a human being." In the case at hand, such anonymity is even more regrettable, as the information would be easily retrievable, if there had been political will to do so. The photos were taken at fairly recent dates by expert government employees (indigenistas) with deep familiarity with the Karajá. In addition, they were presumably obtained from the Museu do Índio, an excellent federal museum founded by Darcy Ribeiro to popularize knowledge of the country's indigenous cultures by showcasing a wealth of materials collected by members of the SPI (and its successor, FUNAI).

Repatriating memories

I became initially acquainted with the identity of one of the Karajá individuals portrayed in the one thousand cruzeiro bill thanks to my Karajá friend and teacher, the late Ijeseberi Karajá. With undeniable pride he explained that the young lady portrayed on the right of the bill's reverse was his aunt Jijukè (after whom he named his daughter), photographed by João Américo Peret (1926-2011), an SPI indigenista who left fond memories among the Karajá. The information was later corroborated when a book by Peret was added to the Curt Nimuendajú Digital Library (thanks to the generosity of Renato Nicolai, curator of our Coleção Nicolai): Mitos e lendas Karajá : Inã son wéra (Peret 1979). There, on page 18, one finds the iconic picture, duly identified as Didiué (a Portuguese spelling for Jijuè, which is the male-speech form of Jijuké's name).



Although the identity of the other individual on the reverse of the one thousand cruzeiro bill seems to remain unknown, the discovery of the photograph's original version helps clarify some common misunderstandings resulting from its gradual decontextualization ("discovery" here being a rather relative term, as the picture has been publicly available for a while). The original picture is available online as part of the digitized collections of famed Brazilian anthropologist Berta Ribeiro (1924-1997), who probably obtained it from the Museu do Índio collections, where it's attributed to Mário Simões (another SPI indigenista familiar with Karajá culture) or Nilo Velloso. The original shows a Karajá woman apparently breastfeeding a baby, the latter wearing a dexi bracelet, its hand resting on the mother's breast. The currency bill, on the other hand, shows a rather cropped version, erasing the baby—and the subject's gender: the picture is often mistaken to be that of a male, as the Casa da Moeda's own website describes the individuals as a Karajá "couple," a mistake that's been reproduced in social and popular media. Wikipedia describes her as "an indigenous man of the Karajá tribe," while through no fault of their own Sepultura fans usually refer to her as "the guy from the cover of Roots."



By describing how a case of seemingly benign homage may evolve into an obvious example of cultural erasure and appropriation, I hope this article contributes to shed some light on the social responsibilities involved in the guardianship of indigenous knowledge. When discussing cultural repatriation, much emphasis tends to be placed on the return of material artifacts, but memory repatriation is even more urgent. As indigenous elders pass away, the link between the materials deposited in research institutions and the communities where they originated tends to disappear. Particularly in the case of Brazilian ethnography, much of the photographic collections tend to lack adequate contextualization. Since much of such documentation was produced by government indigenistas in the second half of last century, as illustrated by the photographs discussed in this article, time is of the essence to promote cooperation between institutional and community guardians to provide collections with accurate context while returning a wealth of knowledge back to their legitimate owners. For that, digital collections may play an essential role, as long as they provide for unencumbered public input and promote active participation from indigenous communities.

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Published originally on March 9th, 2024. Preliminary version.
These notes started as a Tumblr post, in Portuguese.
(*) The cruzeiro was replaced by the real as Brazil's currency in 1994.