Wednesday, October 29, 2025

Ciência, cinema, borracha e curare: Curt Nimuendajú em cena

 Elena Welper

Museu de Astronomia e Ciências Afins/MAST

 

Todos os índios que conheci até agora são extremamente inadequados para um filme. A incapacidade deles de se adaptarem aos modos de pensar estrangeiro é surpreendente. Eles não têm nenhum talento para atuar. Suas próprias representações dramáticas sempre ocorrem em um clima extraordinariamente festivo, no qual dançam lentamente ao longo de dias de pré-celebração. A interferência de qualquer elemento estrangeiro, se não conseguir eliminá-lo, imediatamente, faz tudo retroceder. Não se pode obter nada deles 'sob encomenda', e mesmo as vantagens materiais que lhes são oferecidas não surtem efeito. Até agora, todos os filmes que trataram dos índios locais foram uma farsa ou um fracasso. Não quero ser responsável nem por um nem por outro[1]. (Correspondência Curt Nimuendajú-Franz Boas [CN-FB], 27/03/1933, grifo meu)

 

A passagem acima reproduzida foi retirada de uma carta que Curt Nimuendajú escreveu para Franz Boas. Trata-se do segundo entre os três motivos alegados por ele para justificar a sua recusa em participar de uma expedição cinematográfica[2]. O convite, que havia sido feito em telegrama de 23 de março, não forneceu detalhes sobre o projeto. Limitava-se a perguntar se Curt Nimuendajú poderia “acompanhar um grupo de cineastas sem interferência de trabalho científico”[3]. Presumindo que o convite lhe havia sido feito por se tratar de um “filme indígena", Curt Nimuendajú responde-lhe negativamente, alertando para a vigília “xenófoba” que se imporia a um trabalho desta natureza, tendo em vista o processo em curso para criação do Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas e Artísticas no Brasil e as desconfianças contra o “imperialismo norte americano” e a “espionagem alemã”.

Cabe aqui notar que nesta mesma carta Nimuendajú não se mostra contrário à fiscalização de expedições sensacionalistas, como aquelas que periodicamente retomavam as buscas pelo Coronel Fawcett, mas temia que “as pessoas daqui” não seriam “capazes”, e nem teriam “conveniências”, para “fazer uma distinção entre pesquisa séria” e as iniciativas daquele tipo (CN-FB, 27/03/1933). E ainda que isso acontecesse, Nimuendajú mantinha-se cético em relação às possibilidades de um “filme indígena”. Embora reconhecesse algum valor ilustrativo nas imagens, caso contrário não teria sido ele um fotógrafo em campo, Nimuendajú entendia que a presença de equipamentos cinematográficos, e sobretudo de pessoas para operá-los, ocasionava uma perturbação no cotidiano “tribal” que prejudicava o trabalho etnográfico e inviabilizava a coleta de um registro autêntico[4]. Essa é a ideia expressa no segundo motivo, reproduzido no início deste texto: índios seriam “incapazes” de “atuarem” fora de seus longos rituais, e estes não ocorreriam da mesma maneira sob a presença de estrangeiros. Diante dessa premissa, e em acordo com a visão do próprio Franz Boas, que já havia desconsiderado o valor científico do filme Nanook[5], Nimuendajú explicita sua descrença na autenticidade dos registros fílmicos afirmando que até aquele momento, “todos os filmes que trataram dos índios locais foram uma farsa ou um fracasso” (CN-FB, 27/03/1933).

Por fim, como terceiro motivo para recusar o convite de Franz Boas, Nimuendajú explica que homens do cinema teriam expectativas muito próprias e distintas dos homens da ciência:

Já tive aqui vários contatos com pessoas que trabalham com cinema e sempre tive que constatar que minha opinião sobre o índio é incompatível com a delas. É da natureza do filme que ele seja sobre aparências e não sobre o ser, e o cineasta deve sempre ter em mente o horror do "salão vazio", de modo que ele constantemente atormenta a si mesmo e aos outros com a pergunta: ‘Como o público receberá isso no filme?’. No meu trabalho, por outro lado, é apenas uma questão de estabelecer os fatos com perfeição, e posso dizer com toda a consciência que nunca precisei me perguntar o que o público diria sobre o meu trabalho[6]. (CN-FB, 27/03/1933)

Nimuendajú não cita nomes, mas certamente pesou sobre sua esta avaliação a sua experiência com August Brückner, um pioneiro do filme cultural amazônico. Em 1924 August Brückner chegou em Belém como cinegrafista da expedição do Barão Adolf von Dungern, diretor do filme de natureza Urwelt im Urwald (1925). Em 1929 August Brückner retornou a esta cidade com o propósito de captar imagens para dois novos filmes culturais: um sobre animais e outro sobre os indígenas. Na Alemanha August anunciou o plano de visitar os Mundurucus “caçadores de cabeça” do rio Tapajós, mas por fim, em Belém, decidiu filmar a preparação e uso do curare entre os indígenas da fronteira do Brasil com o Peru. Para isso Curt Nimuendajú foi contratado como guia, e assim realizou sua primeira visita aos Ticuna, em novembro de 1929.

Não foi possível ainda recuperar como e quando ocorreu o contato entre o cineasta e o etnógrafo, mas podemos considerar que a relação de Nimuendajú com a colônia alemã de Belém, e também com o Museu Goeldi, ofereceu condições bastante favoráveis para isso. Podemos presumir também que Nimuendajú, baseado em sua última experiência no rio Tapajós, quando trabalhou como “uma mistura de engenheiro e guia de mata” da Companhia Ford Industrial do Brasil (CN-EN, 03/06/1928), tenha oferecido argumentos convincentes para uma mudança no plano inicial de August. Veremos adiante, todavia, qual foi a motivação que o levou a sugerir a filmagem em uma região (Alto Amazonas) que ele nunca havia visitado.

 


Figura 1 “Trabalhadores da Fordlândia, Brasil, 1930” [1928] (Collections of The Henry Ford)

 

A viagem cinematográfica começou em setembro, mas os textos que Nimuendajú escreveu sobre ela dão conta apenas dos quinze dias finais, quando ele, “comissionado” pelo Serviço de Proteção aos Índios, percorreu as aldeias dos igarapés Belém e Preto, e do lago Cajary (Nimuendajú 1929). Em carta escrita “às pressas” no seringal São Jerônimo (Igarapé Preto), em 03 de novembro de 1929, Nimuendajú contou ao amigo Carlos Estevão que a viagem havia sido “boa”, porém, mais demorada do que o previsto, e que por conta da ausência dos “patrões”, os seus “2 companheiros” teriam decidido “voltar sem terem visto coisa alguma das malocas Ticuna”. De acordo com Nimuendajú, eles teriam criado “pretextos” para não realizar o pagamento combinado, e alegando que havia sido uma “viagem perdida” teriam voltado para Belém no vapor S. Salvador, “a fim de ver se conseguem melhores resultados no Marajó” (03/11/1929 apud Nimuendajú 2000, p. 143).

Conforme indicação do Jornal do Commercio, em 08 de novembro August e seu assistente Edgar Eichhorn desembarcaram do vapor São Salvador em Manaus[7]. Algumas semanas depois, em decorrência de uma doença hepática, August foi hospitalizado no Hospital Beneficência Portuguesa de Belém e, após uma intervenção cirúrgica, acabou falecendo em 19 de dezembro[8]. Nimuendajú já havia retornado para esta cidade, de onde escreveu para Erland Nordenskiöld, diretor do Museu Etnográfico de Gotemburgo, comunicando que havia voltado há poucos dias de uma visita aos Ticuna, alcançados depois de meses de “viagens” e “espera”:

“Fiquei na estrada por três meses, dos quais só pude passar 15 dias nos assentamentos indígenas; o resto do tempo foi gasto viajando e esperando[9]. (Curt Nimuendajú-Erland Nordenskiöld [CN- EM] 16/12/1929).

Após a morte de August, o projeto cinematográfico foi concluído por sua viúva Pola Brückner, que assumiu a direção do filme utilizando-se de seu pseudônimo artístico: Pola Bauer Adamara. Pola não acompanhou August na viagem pelo Solimões, mas em seu livro, Eine Frau ging in den Urwald, publicado quase dez anos depois, ela menciona a ajuda de Nimuendajú.

O filme, Urwald Symphonie/ Die grüne Hölle (73 min.), foi lançado em 1931 e teve pelos menos três versões posteriores, tendo sido exibido no Brasil com o título Nas florestas virgens do Amazonas (Welper 2025). Em nenhuma dessas versões há créditos para a participação de Nimuendajú, mas sua imagem aparece na última versão, Die Grüne Hölle (43 min.), onde podemos assisti-lo como um apanhador de jiboia, ao lado de August Brückner (00:41:55) [10].

Embora o rosto de Curt Nimuendajú esteja oculto pela sombra de seu chapéu, fotografias do arquivo pessoal de Pola Brückner confirmam a sua identidade e o contexto de produção da primeira coleção Ticuna feita por Nimuendajú.

 


Figura 2 : August Brückner e Nimuendajú capturando uma jibóia (Arquivo da família Riedeberger)

 

Uma listagem que se encontrava no Arquivo Curt Nimuendajú do Museu Nacional oferecia uma identificação bem precisa dos itens que compuseram essa sua primeira coleção Tikuna (Coleção Tukuna 1929), mas como o documento não indicava o destino da coleção, e como a sua venda precedeu à criação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, essa coleção não “vigiada” (cf. GRUPIONI 1998) tornou-se mais uma coleção “quase esquecida” de Curt Nimuendajú (cf. SCHRÖDER 2019).

Em sua monografia Ticuna, porém, Nimuendajú deixou uma pista sólida sobre o destino desta coleção ao indicar que o artigo do médico sueco Carl Gustav Santesson, publicado em 1939, discutia as propriedades tóxicas do curare a partir de uma amostra que ele próprio trouxera dos Ticuna do Igarapé Preto (NIMUENDAJÚ 1952:30) [11]. Mas é na sua correspondência com Erland Nordienskiöld que encontramos a confirmação de que uma “pequena coleção de cerca de 120 itens”, composta por itens culturais “que não eram conhecidos em sua literatura” foi comprada pelo Museu Etnográfico de Gotemburgo, por “três mil coroas” (1929, 1930[12]).

Esta venda, todavia, não ocorreu por acaso. Em novembro de 1928, Erland Nordenskiöld escreveu a Nimuendajú manifestando seu interesse em estudos etnográficos da fronteira do Brasil com o Peru (regiões visitadas por Constant Tastevin e Günther Tessmann), e propôs o pagamento de três mil coroas suecas para a viagem, e mais duas mil pela coleção enviada (EN-CN, 05/11/1928). Meses mais tarde, Nimuendajú respondeu explicando que apesar de compartilhar o interesse “no estudo da religião e cultura dos povos do Ucayali e Juruá”, não poderia fazê-lo pois “o valor sugerido não seria suficiente” para um trabalho de campo e que “em todo caso não poderia viajar antes de três meses” (CN-EN, 13/05/1929).

Tendo em vista que naquele momento essa comunicação dava ensejo a uma retomada da interlocução de Nimuendajú com Nordenskiöld (abalada desde o fim de sua contratação pelo museu de Gotemburgo, em 1927), a possibilidade de fazer uma viagem de coleta no alto Solimões, subsidiada por August Brückner e pelo Serviço de Proteção aos Índios, oferecia a Nimuendajú não apenas a possibilidade de ganhar dinheiro, como sempre,  mas também de atender a uma demanda de Nordenskiöld, e assim redimir-se do seu “fracasso” no Rio Negro, fato que ele entendia como motivo para o fim do acordo comercial com o museu sueco.

Expressando as premissas etnológicas de Nimuendajú, esta coleção foi constituída com o objetivo de fornecer uma visão geral daquela cultura e o máximo de “elementos necessários para um estudo comparativo”[13]. Além de armas, utensílios domésticos, adornos e objetos “não conhecidos”, a listagem anexada à carta identifica algumas dezenas de “brinquedos” e de objetos rituais utilizados em uma festa de puberdade que não foi assistida por Nimuendajú. Para alguns itens há indicação do nome nativo, mas nenhum tem seus fabricantes identificados (CN-EN, ?/12/1929).

Hoje, uma pesquisa no base de dados on line do Världskulturmuseet permite um amplo acesso à coleção. A ficha descritiva da Coleção Tukuna confirma a data da coleta (novembro de 1929); local (Igarapé Preto, Lago Cajary e Igarapé do Caldeirão, tributários do Rio Solimões) e informa o preço da coleção, comprada diretamente do coletor por $2.670 coroas suecas.



[1] “2. – Alle mir bis jetzt bekannten Indianer sind für den Film außerordentlich ungeeignet. Ihre Unfähigkeit, sich in frende Gedankengnenge einzuleben ist verblüffend. Es fehlt ihnen jedes schauspielerische Talent. Ihre eigenen dramatischen Darstellungen gehen stetn in einer außergewöhnlichen Feststimmung, in die sich langsam und gradweise durch tagelange Vorfeiern hineintanzen, vor sich. Die dazwischenfunkt irgend eines Fremden Elementen, wenn es ihnen nicht gelingt, es sofort auszuschalten, wirft alles sofort wieder um. “ Auf Bestellung” ist von ihnen nichts zu haben, und auch materielle Vorteile die man ihnen bietet, schlagen nicht an. Bis jetzt ist noch jeder Film der sich mit hiesigen Indianer beschäftigt hat entweder ein Schwindel oder ein Misserfolg gewesen. Ich mochte weder für das eine noch für das and[e]re vor verantwortlich sein.” (CN-FB, 27/03/1933)

[2] Esta carta encerra uma pequena série de missivas trocadas entre Curt Nimuendajú e Franz Boas que podem ser consultadas na coleção Franz Boas Papers, da American Philosophical Society.

[3] “Could you take along movie picture party without interference of scientific work” (FB-CN 23/03/1933)

[4] WELPER 2013. A aventura etnográfica de Curt Nimuendajú. Tellus, ano 13, n. 24, p. 99-120.

[5] SCHÄUBLE, Michaela. Visual Anthropology. The International Encyclopedia of Anthropology. Hilary Callan(Ed). JohnWiley & Sons, Ltd. 2018. P. 6

[6] „3. Ich habe hier mehrfach mit Filmleuten zu tun gehabt und stets Festbestellen müssen das meine Stellungnahme zum Indianer mit der Ihrigen unverträglich ist. Es liegt eben nun einmal in der Natur des Films, dass es sich bei ihm um das Scheinen und nicht um das Sein handelt und dass dem Filmmann immer den Schreck geordnet der “ leeren Saale” vorschweben muss, sodass er beständig sich und andere mit der Frage quält: Wie nimmst den Publikum das in Film auf? Bei meiner Arbeit kommt es dagegen lediglich auf die einwandfreie Feststellung von tatsachen na und ich kann wohl mit gutten gewissen sagen dass mir bei deren Ermittlung noch niemals die Frage gekommen ist, was wohl das Publikum zu meiner Arbeit sagen wird.“ (CN-FB, 27/03/1930)

[7] OS PASSAGEIROS Jornal do Commercio (AM), 09/11/1929, p.02

[8] BRÜCKNER, Pola: Eine Frau ging in den Urwald. Schicksal einer Amazonas-Expedition.Berlin: E. Steininger. 1939.

[9] „Ich war drei Monate unterwegs, und davon habe ich nur 15 Tage in den Siedelungen der Indianer zubringen koennen; der Rest der Zeit verging mit Reisen und Warten.“

[10] Welper, E.Pioneira por acaso: Pola Bauer Adamara e o Kulturfilm amazônico/ Oienierin durch Zufall: Pola Bauer-Adamara und der amazonische Kulturfilm. In: Daniela Rothfuss. (Org.). Esperança e Saudade: História das mulheres imigrantes de língua alemã no Brasil/ Hoffnung und Heimweh. Geschichte der deutschsprachrigen Einwanderinnen in Brasilien. 1ed.São Paulo: Instituto Martius-Staden, 2024, v. , p. 185-209.

[11] Carl Gustav Santesson (1862-1939) era professor de farmacologia do Instituto Karoline, em Estocolmo. O artigo mencionado por Nimuendajú ,“Ein starkes Topf-Kurare von den Tucuna- (Ticuna-) Indianern des oberen Amazonas”, foi publicado em Acta Medica Scandinavica, 75:1-9.

[12] A coleção foi enviada em 15 de outubro pelo navio Hildebrand (CN-EN, 21/09/1930).