Museu de Astronomia e Ciências
Afins/MAST
Todos
os índios que conheci até agora são extremamente inadequados para um filme. A
incapacidade deles de se adaptarem aos modos de pensar estrangeiro é
surpreendente. Eles não têm nenhum talento para atuar. Suas próprias representações
dramáticas sempre ocorrem em um clima extraordinariamente festivo, no qual
dançam lentamente ao longo de dias de
pré-celebração. A interferência de qualquer elemento estrangeiro, se não
conseguir eliminá-lo, imediatamente, faz tudo retroceder. Não se pode obter
nada deles 'sob encomenda', e mesmo as vantagens materiais que lhes são
oferecidas não surtem efeito. Até agora,
todos os filmes que trataram dos índios locais foram uma farsa ou um fracasso.
Não quero ser responsável nem por um nem por outro[1]. (Correspondência Curt Nimuendajú-Franz Boas [CN-FB],
27/03/1933, grifo meu)
A passagem acima reproduzida foi retirada de uma carta que Curt
Nimuendajú escreveu para Franz Boas. Trata-se do segundo entre os três motivos
alegados por ele para justificar a sua recusa em participar de uma expedição
cinematográfica[2]. O
convite, que havia sido feito em telegrama de 23 de março, não forneceu
detalhes sobre o projeto. Limitava-se a perguntar se Curt Nimuendajú poderia
“acompanhar um grupo de cineastas sem interferência de trabalho científico”[3].
Presumindo que o convite lhe havia sido feito por se tratar de um “filme
indígena", Curt Nimuendajú responde-lhe negativamente, alertando para a
vigília “xenófoba” que se imporia a um trabalho desta natureza, tendo em vista
o processo em curso para criação do Conselho de Fiscalização das Expedições
Científicas e Artísticas no Brasil e as desconfianças contra o “imperialismo
norte americano” e a “espionagem alemã”.
Cabe aqui notar que nesta mesma carta Nimuendajú não se mostra contrário
à fiscalização de expedições sensacionalistas, como aquelas que periodicamente
retomavam as buscas pelo Coronel Fawcett, mas temia que “as pessoas daqui” não
seriam “capazes”, e nem teriam “conveniências”, para “fazer uma distinção entre
pesquisa séria” e as iniciativas daquele tipo (CN-FB, 27/03/1933). E ainda que
isso acontecesse, Nimuendajú mantinha-se cético em relação às possibilidades de
um “filme indígena”. Embora reconhecesse algum valor ilustrativo nas imagens,
caso contrário não teria sido ele um fotógrafo em campo, Nimuendajú entendia
que a presença de equipamentos cinematográficos, e sobretudo de pessoas para
operá-los, ocasionava uma perturbação no cotidiano “tribal” que prejudicava o
trabalho etnográfico e inviabilizava a coleta de um registro autêntico[4].
Essa é a ideia expressa no segundo motivo, reproduzido no início deste texto:
índios seriam “incapazes” de “atuarem” fora de seus longos rituais, e estes não
ocorreriam da mesma maneira sob a presença de estrangeiros. Diante dessa
premissa, e em acordo com a visão do próprio Franz Boas, que já havia
desconsiderado o valor científico do filme Nanook[5],
Nimuendajú explicita sua descrença na autenticidade dos registros fílmicos
afirmando que até aquele momento, “todos os filmes que trataram dos índios
locais foram uma farsa ou um fracasso” (CN-FB, 27/03/1933).
Por fim, como terceiro motivo para recusar o convite de Franz Boas,
Nimuendajú explica que homens do cinema teriam expectativas muito próprias e
distintas dos homens da ciência:
Já tive aqui vários contatos com pessoas que trabalham com cinema e
sempre tive que constatar que minha opinião sobre o índio é incompatível com a
delas. É da natureza do filme que ele seja sobre aparências e não sobre o ser,
e o cineasta deve sempre ter em mente o horror do "salão vazio", de
modo que ele constantemente atormenta a si mesmo e aos outros com a pergunta:
‘Como o público receberá isso no filme?’. No meu trabalho, por outro lado, é
apenas uma questão de estabelecer os fatos com perfeição, e posso dizer com
toda a consciência que nunca precisei me perguntar o que o público diria sobre
o meu trabalho[6].
(CN-FB, 27/03/1933)
Nimuendajú não cita nomes, mas certamente pesou sobre sua esta avaliação
a sua experiência com August Brückner, um pioneiro do filme cultural amazônico.
Em 1924 August Brückner chegou em Belém como cinegrafista da expedição do Barão
Adolf von Dungern, diretor do filme de natureza Urwelt im Urwald (1925).
Em 1929 August Brückner retornou a esta cidade com o propósito de captar
imagens para dois novos filmes culturais: um sobre animais e outro sobre os
indígenas. Na Alemanha August anunciou o plano de visitar os Mundurucus “caçadores
de cabeça” do rio Tapajós, mas por fim, em Belém, decidiu filmar a preparação e
uso do curare entre os indígenas da fronteira do Brasil com o Peru. Para isso Curt
Nimuendajú foi contratado como guia, e assim realizou sua primeira visita aos
Ticuna, em novembro de 1929.
Não foi possível ainda recuperar como e quando ocorreu o contato entre o
cineasta e o etnógrafo, mas podemos considerar que a relação de Nimuendajú com a
colônia alemã de Belém, e também com o Museu Goeldi, ofereceu condições
bastante favoráveis para isso. Podemos presumir também que Nimuendajú, baseado
em sua última experiência no rio Tapajós, quando trabalhou como “uma mistura de
engenheiro e guia de mata” da Companhia Ford Industrial do Brasil (CN-EN,
03/06/1928), tenha oferecido argumentos convincentes para uma mudança no plano
inicial de August. Veremos adiante, todavia, qual foi a motivação que o levou a
sugerir a filmagem em uma região (Alto Amazonas) que ele nunca havia visitado.
Figura
1 “Trabalhadores da Fordlândia, Brasil, 1930” [1928] (Collections of The Henry Ford)
A viagem cinematográfica começou em setembro, mas os
textos que Nimuendajú escreveu sobre ela dão conta apenas dos quinze dias
finais, quando ele, “comissionado” pelo Serviço de Proteção aos Índios,
percorreu as aldeias dos igarapés Belém e Preto, e do lago Cajary (Nimuendajú
1929). Em carta escrita “às pressas” no seringal São Jerônimo (Igarapé
Preto), em 03 de novembro de 1929, Nimuendajú contou ao amigo Carlos Estevão
que a viagem havia sido “boa”, porém, mais demorada do que o previsto, e que
por conta da ausência dos “patrões”, os seus “2 companheiros” teriam decidido “voltar sem terem visto coisa alguma das malocas
Ticuna”. De acordo com Nimuendajú, eles teriam criado “pretextos” para não
realizar o pagamento combinado, e alegando que havia sido uma “viagem perdida”
teriam voltado para Belém no vapor S.
Salvador, “a fim de ver se conseguem melhores resultados no Marajó” (03/11/1929
apud Nimuendajú 2000, p. 143).
Conforme indicação do Jornal do Commercio, em 08 de novembro
August e seu assistente Edgar Eichhorn desembarcaram do vapor São Salvador em Manaus[7].
Algumas semanas depois, em decorrência de uma doença hepática, August foi
hospitalizado no Hospital Beneficência Portuguesa de Belém e, após uma intervenção
cirúrgica, acabou falecendo em 19 de dezembro[8].
Nimuendajú já havia retornado para esta cidade, de onde escreveu para Erland
Nordenskiöld, diretor do Museu Etnográfico de Gotemburgo, comunicando que havia
voltado há poucos dias de uma visita aos Ticuna, alcançados depois de meses de
“viagens” e “espera”:
“Fiquei na estrada por três meses, dos quais só
pude passar 15 dias nos assentamentos indígenas; o resto do tempo foi gasto
viajando e esperando[9]. (Curt Nimuendajú-Erland Nordenskiöld [CN- EM] 16/12/1929).
Após a morte de August, o projeto cinematográfico foi
concluído por sua viúva Pola Brückner, que assumiu a direção do filme
utilizando-se de seu pseudônimo artístico: Pola Bauer Adamara. Pola não
acompanhou August na viagem pelo Solimões, mas em seu livro, Eine Frau ging
in den Urwald, publicado quase dez anos depois, ela menciona a ajuda de
Nimuendajú.
O filme, Urwald Symphonie/
Die grüne Hölle (73 min.), foi lançado em 1931 e teve pelos menos três
versões posteriores, tendo sido exibido no Brasil com o título Nas florestas
virgens do Amazonas (Welper 2025). Em nenhuma dessas versões há créditos para
a participação de Nimuendajú, mas sua imagem aparece na última versão, Die
Grüne Hölle (43 min.), onde podemos assisti-lo como um apanhador de jiboia,
ao lado de August Brückner (00:41:55)
[10].
Embora o rosto de Curt Nimuendajú esteja oculto pela sombra de seu
chapéu, fotografias do arquivo pessoal de Pola Brückner confirmam a sua
identidade e o contexto de produção da primeira coleção Ticuna feita por
Nimuendajú.
Figura 2 : August Brückner e Nimuendajú capturando uma jibóia (Arquivo da
família Riedeberger)
Uma listagem que se encontrava no Arquivo Curt Nimuendajú do Museu
Nacional oferecia uma identificação bem precisa dos itens que compuseram essa
sua primeira coleção Tikuna (Coleção Tukuna 1929), mas como o documento não
indicava o destino da coleção, e como a sua venda precedeu à criação do
Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, essa coleção
não “vigiada” (cf. GRUPIONI 1998) tornou-se mais
uma coleção “quase esquecida” de Curt Nimuendajú (cf. SCHRÖDER 2019).
Em sua monografia Ticuna, porém, Nimuendajú deixou uma pista sólida
sobre o destino desta coleção ao indicar que o artigo do médico sueco Carl
Gustav Santesson, publicado em 1939, discutia as propriedades tóxicas do curare
a partir de uma amostra que ele próprio trouxera dos Ticuna do Igarapé Preto (NIMUENDAJÚ 1952:30) [11].
Mas é na sua correspondência com Erland Nordienskiöld que encontramos a
confirmação de que uma “pequena coleção de cerca de 120
itens”, composta por itens culturais “que não eram conhecidos em sua
literatura” foi comprada pelo Museu Etnográfico de Gotemburgo, por “três mil
coroas” (1929, 1930[12]).
Esta venda, todavia, não ocorreu por acaso.
Em novembro de 1928, Erland Nordenskiöld escreveu a Nimuendajú manifestando seu
interesse em estudos etnográficos da fronteira do Brasil com o Peru (regiões
visitadas por Constant Tastevin e Günther Tessmann), e propôs o pagamento de
três mil coroas suecas para a viagem, e mais duas mil pela coleção enviada (EN-CN, 05/11/1928). Meses mais tarde, Nimuendajú
respondeu explicando que apesar de compartilhar o interesse “no estudo da
religião e cultura dos povos do Ucayali e Juruá”, não poderia fazê-lo pois “o
valor sugerido não seria suficiente” para um trabalho de campo e que “em todo
caso não poderia viajar antes de três meses” (CN-EN, 13/05/1929).
Tendo em vista que naquele momento essa comunicação dava ensejo a uma
retomada da interlocução de Nimuendajú com Nordenskiöld (abalada desde o fim de
sua contratação pelo museu de Gotemburgo, em 1927), a possibilidade de fazer
uma viagem de coleta no alto Solimões, subsidiada por August Brückner e pelo Serviço
de Proteção aos Índios, oferecia a Nimuendajú não apenas a possibilidade de ganhar
dinheiro, como sempre, mas também de atender
a uma demanda de Nordenskiöld, e assim redimir-se do seu “fracasso” no Rio
Negro, fato que ele entendia como motivo para o fim do acordo comercial com o museu
sueco.
Expressando as premissas etnológicas de Nimuendajú, esta coleção foi
constituída com o objetivo de fornecer uma visão geral daquela cultura e o
máximo de “elementos necessários para um estudo comparativo”[13].
Além de armas, utensílios domésticos, adornos e objetos “não conhecidos”, a
listagem anexada à carta identifica algumas dezenas de “brinquedos” e de
objetos rituais utilizados em uma festa de puberdade que não foi assistida por
Nimuendajú. Para alguns itens há indicação do nome nativo, mas nenhum tem seus
fabricantes identificados (CN-EN, ?/12/1929).
Hoje, uma pesquisa no base de dados on line do Världskulturmuseet permite um amplo
acesso à coleção. A ficha descritiva da Coleção
Tukuna confirma a data da coleta (novembro de 1929); local (Igarapé Preto,
Lago Cajary e Igarapé do Caldeirão, tributários do Rio Solimões) e informa o
preço da coleção, comprada diretamente do coletor por $2.670 coroas suecas.
[1] “2. – Alle mir bis jetzt
bekannten Indianer sind für den Film außerordentlich ungeeignet. Ihre
Unfähigkeit, sich in frende Gedankengnenge einzuleben ist
verblüffend. Es fehlt ihnen jedes schauspielerische Talent. Ihre eigenen
dramatischen Darstellungen gehen stetn in einer außergewöhnlichen Feststimmung,
in die sich langsam und gradweise durch tagelange Vorfeiern hineintanzen,
vor sich. Die dazwischenfunkt irgend eines Fremden Elementen, wenn es ihnen
nicht gelingt, es sofort auszuschalten, wirft alles sofort wieder um. “ Auf
Bestellung” ist von ihnen nichts zu haben, und auch materielle Vorteile die man
ihnen bietet, schlagen nicht an. Bis jetzt ist noch jeder Film der sich mit
hiesigen Indianer beschäftigt hat entweder ein Schwindel oder ein Misserfolg
gewesen. Ich mochte weder für das eine noch für das and[e]re vor
verantwortlich sein.” (CN-FB, 27/03/1933)
[2] Esta carta encerra uma
pequena série de missivas trocadas entre Curt Nimuendajú e Franz Boas que podem
ser consultadas na coleção Franz Boas
Papers, da American Philosophical
Society.
[3] “Could you take along
movie picture party without interference of scientific work” (FB-CN
23/03/1933)
[4] WELPER 2013. A aventura etnográfica de Curt
Nimuendajú.
Tellus, ano 13, n. 24, p. 99-120.
[5]
SCHÄUBLE,
Michaela. Visual Anthropology. The International Encyclopedia of Anthropology. Hilary
Callan(Ed). JohnWiley & Sons, Ltd. 2018. P. 6
[6] „3. Ich habe hier mehrfach
mit Filmleuten zu tun gehabt und stets Festbestellen müssen das meine
Stellungnahme zum Indianer mit der Ihrigen unverträglich ist. Es liegt eben nun
einmal in der Natur des Films, dass es sich bei ihm um das Scheinen und nicht
um das Sein handelt und dass dem Filmmann immer den Schreck geordnet der “
leeren Saale” vorschweben muss, sodass er beständig sich und andere mit der
Frage quält: Wie nimmst den Publikum das in Film auf? Bei meiner Arbeit kommt
es dagegen lediglich auf die einwandfreie Feststellung von tatsachen na und ich
kann wohl mit gutten gewissen sagen dass mir bei deren Ermittlung noch niemals
die Frage gekommen ist, was wohl das Publikum zu meiner Arbeit sagen wird.“
(CN-FB, 27/03/1930)
[7] OS
PASSAGEIROS Jornal do Commercio (AM), 09/11/1929, p.02
[8] BRÜCKNER,
Pola: Eine Frau ging in den Urwald. Schicksal einer Amazonas-Expedition.Berlin:
E. Steininger. 1939.
[9] „Ich
war drei Monate unterwegs, und davon habe ich nur 15 Tage in den Siedelungen
der Indianer zubringen koennen; der Rest der Zeit verging mit Reisen und
Warten.“
[10] Welper, E.Pioneira por acaso:
Pola Bauer Adamara e o Kulturfilm amazônico/ Oienierin durch Zufall: Pola
Bauer-Adamara und der amazonische Kulturfilm. In: Daniela Rothfuss. (Org.).
Esperança e Saudade: História das mulheres imigrantes de língua alemã no
Brasil/ Hoffnung und Heimweh. Geschichte der deutschsprachrigen Einwanderinnen in
Brasilien. 1ed.São Paulo: Instituto Martius-Staden, 2024, v. , p. 185-209.
[11] Carl Gustav Santesson
(1862-1939) era professor de farmacologia do Instituto Karoline, em Estocolmo.
O artigo mencionado por Nimuendajú ,“Ein starkes Topf-Kurare von den Tucuna- (Ticuna-) Indianern
des oberen Amazonas”, foi publicado em Acta
Medica Scandinavica, 75:1-9.
[12] A coleção foi enviada
em 15 de outubro pelo navio Hildebrand (CN-EN, 21/09/1930).
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